Quem, de fato, se sente relaxado, querido e motivado nos dias de hoje? Não que todas essas sensações sejam perenes ou devam ocorrer simultaneamente, mas a vida anda puxada.
A crise de saúde mental é evidente tanto no mundo lá como no de cá. Desenvolvidos e subdesenvolvidos, todos unidos pela mesma dor, que, por não ser física, é frequentemente subestimada.
Ansiedade, depressão, trauma, insônia e uma infinidade de outras condições corroem a saúde da população, sem distinção de idade.
Vivemos na sociedade do cansaço que nos exige cada vez mais: mais produtividade, mais sucesso, mais beleza, mais desempenho. Neste mundo onde bombas explodem, cidades alagam e florestas queimam, pessoas agonizam.
Infelizmente, diagnóstico e tratamento adequados em saúde mental são privilégios de poucos. A demora em buscar ajuda, o estigma associado aos transtornos mentais, a escassez de profissionais e o alto custo do cuidado tornam o cenário alarmante. Dizer “não estou bem” ainda é visto como fraqueza ou motivo de vergonha.
Os números são obscenos. Cerca de 30% da população mundial sofre de algum transtorno mental, mas 50% desses casos permanecem sem diagnóstico, e apenas 25% dos diagnosticados corretamente recebem o tratamento adequado. O impacto econômico é monumental. A Organização Mundial da Saúde estima que, em 2030, 6 trilhões de dólares serão perdidos devido à precariedade da saúde mental. Aumentar a eficiência do cuidado em apenas 10% poderia gerar uma economia de 600 bilhões de dólares, mudando a vida de muita gente no planeta.
Este cenário crítico inclui desde doenças neurodegenerativas graves, como o Alzheimer, até transtornos mentais comuns, como depressão e ansiedade, além de problemas relacionados ao abuso de substâncias. E aqui ainda não entrou na conta uma epidemia ainda pouco discutida: os transtornos de impulso associados a apostas e jogos, como as “bets”. Esse fenômeno drena diretamente recursos da economia, concentrando riqueza nas mãos de poucos.
Assim como quem sofre de depressão tende a se calar, quem sofre com o jogo esconde sua compulsão. O resultado é uma lacuna diagnóstica e assistencial gigantesca.
Paradoxalmente, parece que todos estão sob o efeito de algum psicotrópico.
Desde o surgimento dos primeiros medicamentos psiquiátricos em 1954 com a clorpromazina, houve uma revolução no tratamento dos transtornos mentais. Muita gente melhorou e viveu uma vida mais a contento. Nomes como zolpidem, clonazepam, escitalopram e sertralina tornaram-se familiares, mas, apesar disso, o estigma persiste. Medicamentos psiquiátricos são vistos como “remédios de louco” ou “química demais para o corpo”. Até o próprio psiquiatra, em alguns contextos, leva uma estampa indesejada. Afinal, enquanto ninguém sugere uma consulta com um cardiologista como forma de insulto, recomendar a visita a um psiquiatra muitas vezes é percebido como acusação e invalidação da fala.
Neste amplo cenário de preconceitos e tratamentos subutilizados, surge também a questão da cannabis medicinal. Curiosamente, onde muitos se constrangem em admitir seu sofrimento e buscar ajuda tradicional, a cannabis parece oferecer um caminho onde as pessoas se sentem mais à vontade para procurar cuidado. Com a intermediação da tecnologia, com ferramentas de telemedicina ou chats inteligentes, as pessoas parecem se sentir menos julgadas, até mesmo pelos próprios médicos.
Em relação à cannabis, muitos buscam nela uma solução “mais natural”, o que é um erro conceitual, já que toda substância, seja ela sintética ou natural, é composta por químicos. Além disso, atrasar o início de tratamentos comprovadamente eficazes em busca de alternativas pode agravar o quadro clínico.
Por outro lado, alguns recorrem à cannabis depois de terem se frustrado com os tratamentos convencionais. Embora estes medicamentos muitas vezes sejam eficazes, seus efeitos colaterais podem ser limitantes, algo que o discurso da cannabis medicinal frequentemente promete evitar. Até existe um sentido biológico para isso, tendo em vista que há escassez de receptores canabinóides no tronco cerebral e não existe descrição em literatura científica de morte por overdose de cannabis. No entanto, é preciso cautela – nada é tão bom ou tão ruim como se pinta. Café em excesso também faz mal mesmo sendo natural.
Chegamos ao consenso que nem tudo que vem da natureza é seguro ou eficaz, agora, no entanto, a cannabis tem uma longa história de uso medicinal, datando de milênios atrás, na China antiga que agora é um dos países que mais se desenvolve social e tecnologicamente. Questiono o que nos impediu de explorar a planta e suas interações com o cérebro humano até 1992, quando foi descoberta a anandamida, nosso “THC natural”. Essa molécula, associada à palavra “bliss” em inglês, é parte do sistema endocanabinoide, algo que só agora começamos a compreender melhor. Anandamida poderia ser descrita como a substância da felicidade, muito semelhante à onda de bem-estar após uma corrida ou uma vitória.
Devemos, contudo, ter cuidado com promessas de cura universal. Já ouvimos discursos semelhantes com a geração “Prozac”, o inibidor seletivo da recaptação de serotonina que prometia eliminar o mal-estar do mundo, mas não entregou a panaceia anunciada. Promessas são armadilhas tanto para a ciência quanto para os pacientes.
O que faz a verdadeira diferença na saúde, inclusive na mental, é a boa ciência e, especialmente, bons médicos. A cannabis medicinal pode não ser a solução definitiva, mas oferece lições valiosas e mais uma opção terapêutica a ser considerada quando necessário. Ela nos convida a repensar nossos preconceitos e abrir novas portas para o estudo e tratamento de uma crise de saúde mental que o mundo não pode mais ignorar.
Mesmo que a cura ou a felicidade ainda pareçam distantes, é nossa responsabilidade, como médicos ou cientistas, continuar a buscá-las.
Dr. Victor Bigelli de Carvalho – CRM 125.044 / RQE 56655
Médico – Faculdade de Medicina da USP
Psiquiatra – Instituto de Psiquiatria FMUSP
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